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quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

Queria ser como o Valter Hugo Mãe, mas sem a careca

O que eu queria mesmo era escrever como o Valter Hugo Mãe. Pego no JL e leio sem cerimónias até chegar à sua crónica. Aqui chegada recomponho-me no sofá, desligo os sons à minha volta, meto a chucha na criança e leio como quem sorve um batido: com gosto. Rio-me e paro. Reflito e paro. Sublinho e por fim, deixo-o a amadurecer durante dias na minha mala, no meio de agendas e carteiras e taloes do supermercado. Vou relendo nas paragens do dia, como que a desejar que aquelas frases, aquele raciocinio, por osmose, fiquem também meus. Queria que ao ler Ruben Fonseca me sentisse pervertida. Ou que o desejo de levar flores à Clarice Lispector crescesse em mim. gostava de, tal como ele, amadurecer os amores e escrever poemas. Queria que a minha componente animal cedesse, mas não cede. Também não consigo ter medo de andar de avião, aliás, anima-me as alturas, mas tal como ele, gostava de voltar atrás e preencher as lacunas. Gostava de suspender-me e ir ali, a 1996 ou a 2003, ou a 2004 e resolver o que não resolvi.
Queria mesmo, como ele, mudar os pesadelos para sonhos, mesmo que isso implicasse ter de acordar durante a noite para fazer chichi.

Queria, mas não escrevo. Fico aquém. E com medo da desilusão, vou continuar a lê-lo assim, condensado, em crónicas porque o receio da desilusão do livro não me encantar é muita. E assim, deixo os livros para quando tiver coragem de desapreciar o Valter, porque por enquanto só quero gostar, como gosto, do que ele escreve.

deixo-vos uma cronica... a que ainda anda comigo na mala, no meio dos sapatos da minha filha, dos meus papeis, do meu baton do cieiro que o tempo está frio e corta o rosado da minha boca.

Ano 2010

Pois termina a minha lendária habilidade para dormir. Em 2010 a acordar a meio da noite para fazer chichi, como os velhotes fazem, e interrompo o sono com pesadelos e barulhos de gatos parvos. Acho sempre que me assaltam a casa, a honra, a caixa das bolachas, os quinze euros na carteira, o sossego.

valter hugo mãe
Crónicas - Ano 2010
Aos 39 anos viro definitivamente a esquina, lá se foi a rua da juventude, olá resto da vida, o reumatismo a piorar e a sensatez cada vez mais induzida. Que chato. Passou-me o rock'n'roll. Agora, ando sempre a ouvir piano e a pensar em pintores e coisas ainda mais delicadas. Já só vejo filmes esquisitos e já só falo de assuntos com a mania. Que chato. Pareço pai de alguém, pareço um padre.
Eu sei que ler Rubem Fonseca me perverte. Há livros que, sendo magníficos, deviam ser proibidos por fazerem danos maiores do que o açúcar, por serem mais deformadores do que a gravidez nas mulheres. Eu ando a ler Rubem Fonseca para ver se o novo ano chega de água no bico, a despentear-me a careca existencial, a obrigar-me a voltar atrás com a aposentação. Apetece-me ir para o Brasil, fugir deste frio, desta crise, deste Sócrates, quero fugir destas festas que sabem a embrulho chinês. O frio, sobretudo, é que me lixa. Apetece-me ir para o Brasil levar flores à Clarice Lispector porque ela deve estar triste por eu me ter deixado enfraquecer.
Portei-me bem durante todo o ano de 2010. Emagreci, estava demasiado gordo, controlei o medo de andar de aviões, amadureci os amores, escrevi poemas, não espiei de propósito uma vizinha que se descuida à janela e regressei vivo de uma viagem a Caracas. Vejo o tempo como água que evapora, fica ainda um pouco refrescando o ar mas já não a podemos beber, é só uma presença muito ténue. O tempo que passa é isso, uma presença algo ténue, e agora sinto-me, como invariavelmente me sinto sempre, à procura das identidades mínimas, a tabela do que quero, do que devo ser. A fazer chichi a meio da noite estou capaz de emigrar de mim mesmo, farto de me aturar. E portar-me bem, afinal, só me cansa.
Fui ver os Mão Morta ao renovado e maravilhoso Hard Club, e ouvir o E se depois ao vivo faz de mim um homem perigoso. Subitamente, eu sei que subitamente posso tornar-me noutra coisa, terrivelmente voltar atrás e sonhar com a galeria de anti-heróis que sempre me fascinaram e que pode fazer-me querer ser o anti-herói ao menos de mim mesmo. Se o sangue ainda correr, corre atrás dele. Gostava de pôr o sangue a correr atrás de mim e ser mais impiedoso, a desprezar os pianos e os filmes esquisitos e a pensar que estar vivo é algo mais animal.
É exatamente a minha componente animal que anda toda a ceder. Isso do chichi à noite e as dores nas costas e o frio demasiado, até o Sócrates é algo que me afeta pelo animal adentro, se é que me explico bem. Vamos envelhecendo e ganhando juízo e o corpo parece que emburrece. Que triste troca, o corpo por uma cabeça melhor ou mais convencida de ser melhor. Raios partam lá a lógica das coisas.
Em 2011 vou fazer 40 anos. Toda a gente dirá que sou ainda um jovem, mas o meu drama é sentir que me faltam cumprir aventuras de todas as idades que tive. É como se ainda marcasse na agenda compromissos assumidos aos dez anos. Devia haver uma suspensão do tempo para voltarmos ao que fomos e preenchermos os vazios, as lacunas, o que nos faltou e fica para sempre a fazer falta. Porque seria assim o modo de completarmos a vida, toda a vida.
Eu ainda sinto o impasse de pedir uma miúda em namoro aos 15 anos. O impasse que me fez não pedir. Ao invés disso, segui na marginal calado a pensar que no dia seguinte teria mais coragem. Tinha de haver um mecanismo que me levasse a esse dia da vida e, servido de uma melhor auto-estima, me pusesse a namorar com a rapariga, a levá-la ao cinema, a mostrar-lhe o sexo, a zangar-me com ela e a acabar tudo para seguir em frente em harmonia e sem incompletudes.
Ficaram por cumprir muitas das tarefas suscitadas pelo ano de 2010. Sei que este tempo passa deixando pontas soltas por todos os lados e essa angústia crescendo de não ser capaz de dar conta de tanto recado. Entristece-me absolutamente a chegada desta fase de nova miséria. Assusta-me pensar que os homens bem-falantes que durante toda a vida vimos a contarem-nos histórias na televisão eram burros ou falsos. Assusta-me pensar que as pessoas, depois de tanto flower power e tanto telefilme de domingo, não sejam ainda consideradas o mais importante de tudo. Este foi o ano de retirada das máscaras e exposição cabal do cinismo. Já não vemos os políticos importados a convencer-nos de que sabem tudo e que o futuro vai ser belo. Dizem-nos antes que não há culpados e que se não aceitarmos o que está posto isto fica pior. Lá vamos nós atrás dos mesmos senhores sem acreditar neles e encurralados direitinho. Gosto tão pouco de estar encurralado. Alguém dizia que estávamos todos a aspirar a um mundo novo, mas quem tem nas mãos as decisões para alguma mudança são os mesmos homens de sempre. Era tão importante que se varressem da nossa frente esses interessados de tantas gerações, sustentados até às raízes pelos esforços do coletivo.
Esta noite vou fazer chichi na televisão, a ver se elimino parte do problema e se mudo dos pesadelos para os sonhos. Vou pintar flores nas camisolas, que sendo algo mariquinhas também é muito estranho e sugere perigo, e vou passar a aquecer os dias com a intensificação de cada coisa. Para que não fique nada incompleto. Porque 2012 ainda me deixa menos apetite do que 2011, e 2010 está colado de maldade à sola do nosso sapato, como uma pastilha elástica nojenta.
Dito isto, votos de bom ano novo a todos.

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