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quarta-feira, 19 de junho de 2013

Da puta da sorte ou da falta dela ( ou de como não ter capacidade de encontrar melhor titulo para este post)


 

Lavei a mão, mas não queria ter lavado. Minto, foi um misto de vontade louca de me lavar e vontade de não lavar, principalmente a mão direita. Aquela que utilizei para dar o iogurte extra ao sem-abrigo que encontrei na gare do oriente ontem à noite.

Explico:

Ontem fui com uma brigada (Associação Luchapa) dar comida aos sem-abrigo que se encontravam na gare do oriente e na Igreja de Arroios. Eramos cinco miúdas (um rapaz), mulheres feitas, que deixavam os filhos em quem confiam e fomos ajudar, achamos nós; a prolongar a estadia deles na rua, acham umas mentes iluminadas que são contra este tipo de atitude. Fomos agasalhadas que a noite fez-se fria. A sopa acabada de fazer bem aconchegada num dos carros, noutro carro os iogurtes, as bolachas e os leites achocolatados que NINGUÉM deu não obstante de o pedido que fizemos no facebook ter tido milhentas partilhas. As pessoas partilham e pronto, tá feito o trabalho. Nada de ir ao supermercado mais próximo comprar quatro iogurtes que isso dá trabalho e a vida está difícil para todos. É só um desabafo, desculpem lá. Arrancamos com aquilo que cada uma de nós conseguiu arranjar. A ideia era sopa quentinha para todos e dois iogurtes também para todos para além de bolachas e fruta. Organizamos e lá fomos, nós e a comida, no quentinho do carro sob as luzes amarelas que iluminam Lisboa. Descemos as escadarias que dão acesso à gare do oriente e lá estavam, pelas laterais, uns a dormir, outros a ouvir musica e muitos a conversarem. Obrigamo-los a fazerem filas. Fazem sem protestar. A Raquel, habituada a estas andanças, andou perto de mim, fresquinha nestas coisas. Temia ela, se calhar, que eu me achasse capaz de mudar o mundo e desatasse a falar e a fazer trabalho social. Coisa para o qual não estou talhada e coisa para a qual muitos deles também não estão abertos. A maioria percebe quando chega uma brigada. Alinha-se em fila. São educados. A cada tigela que dava ouvi um ‘obrigado’ de volta. Fiz questão de lhes tocar muitas das vezes. Olhá-los nos olhos, quando não estava com as lagrimas a bailarem, porque eles não precisam de comiseração. Até que vimos um senhor ao fundo, sentado, cabeça baixa, sem cobertores e agarrado a uma pequena mala. Ficamos na dúvida se seria um sem-abrigo. A Raquel não o conhecia. Se era estaria ali há pouco tempo. A vergonha de quem não domina o ambiente, ainda. Raquel pergunta-lhe se ‘vive ali’, e cabisbaixo acena positivamente. A vergonha não lhe permitiu que fosse para a fila, que abraçasse as regras da rua. Estava longe do grupo. Fui buscar-lhe sopa e cobertores. Perguntamos se queria que lhe fizéssemos a cama. Não, não queria. Era algo que só ele poderia fazer. A única vez que levantou a cabeça vi que chorava. Tinha a idade do meu pai. Agradeceu-me e pediu que Deus me abençoasse. Ajoelhei-me e agarrei-lhe nas mãos. Disse-lhe que voltaria. Depois percebi que não podia ficar ali, paralisada, por quem entre ter dinheiro para uma casa ou dinheiro para remédios, opta pela rua para gastar os seus míseros 300 euros em medicação e mais um par de botas. Voltei a olhar para a Raquel. Tive vontade de chorar. Não podia. A Raquel tem uns olhos azuis-mar que me leram. Deu-me os iogurtes como quem diz ‘vá, passa a outro’. Comecei a dar dois a cada um, como tínhamos estipulado. Cheguei a outro, desta vez um rapaz ainda novo, nitidamente doente, tossia muito, muito. Pediu-me três. Sabia que não podia dar três. Se houvesse quem visse que dava mais a um que a outros a coisa podia azedar. Mas vi que ele precisava. Disse-lhe que não e no fim, quando só tinha um no saco, dobrei o saco e fui ter com ele e meti-lhe o iogurte no bolso do casaco. Aí olhou-me e beijou-me a mão demoradamente. Fiz-lhe uma festa na face. Seguimos. Demos a roupa, as mantas que as noites ainda estão frias. Queriam meias. Não tínhamos. E queriam roupa interior. Também não tínhamos. Fomos assentando mentalmente o que precisam para levarmos numa próxima vez.

Não sei se vos disse, mas ouço Antony enquanto vos escrevo. Ouço a música I Hope There’s Someone em modo repeat.

Viemos para casa, devagar, parando aqui e acolá para as que fumam pudessem fumar. Eu senti, o tempo todo, que tinha levado um par de bofetadas e que foram bem dadas. Bofetadas que nos obrigam a abrir os olhos, de quando em vez, e a ver o que nos rodeia. Penso que é preciso sorte na vida e que tenho tido muita. Muita. Sorte também para que a cabeça não se desvie. E sorte para que o corpo não exija os vícios que o destroem. Sorte por ter amigos e família que me possam valer. Sorte. A puta da sorte é que tem a ultima palavra, não duvidem. E espero que ‘hope there’s someone caso precise.

Faltou-me beijar a minha filha quando cheguei a casa, mas ela dormia o sono dos justos em casa da avó que lhe enche o cú de mimos. E quando me deitei, a minha cama, os meus lençóis, o meu quarto, a casa numa boa zona de Oeiras, uma privilegiada, aqui a moça, em vez de me saber a paraíso, soube-me a excesso. E pensei nas vezes em que partilhei necessidades sem ajudar, como fizeram os meus amigos e conhecidos. Pensei nas vezes que pude ajudar, mas não o fiz, como senti que muitos o fizeram ontem. Nos erros dos outros, vi os meus e tive vergonha. E adormeci a pedir a Deus que a minha filha nunca venha a precisar da piedade alheia, mas que se precisar, que a tenha.

Obrigada raquel, obrigada Cristina(s), obrigada Leonor e muito obrigada mano pela companhia. Ontem fomos grandes.

3 comentários:

  1. ...o que mais impressiona é que TODOS podíamos mudar o mundo, esse mundo que está ao nosso lado, à nossa volta e em toda a parte.

    Mas é sempre mais fácil nada dizer. Nada fazer. fazer de conta que tudo está bem.

    Mas não está.

    Obrigado Carla. A Luchapa é isso.
    Beijos,



    ACASO

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  2. Uma grande vénia para si!

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