Ao almoço contava à Marta e ao
Rui a minha relação de amizade com a R. Contava-lhes que nós fomos excecionais
amigas durante anos e anos. Ela sabia-me de cor. Gostava, verdadeiramente, de
mim. Aceitava, na perfeição, os meus defeitos. Um dia disse-me que queria
conhecer a minha Florença. Juntamos dinheiro e fomos. Mostrei-lhe como aquela
cidade sabe a chocolate e soa a Jacques Brel. Como a ponte Vechio tem qualquer
coisa que se agiganta perante nós. A que sabe os capuchinos em que a espuma
forma um coração. Ficamos por lá quatro dias em cheio. Lembro-me de me
apaixonar por um vestido de renda Armani que estava numa montra meia perdida na
Idade Média. Era assim um misto de passado e futuro que me encantava. Comi com
ela o meu primeiro risoto e mostrei-lhe os efeitos benéficos do álcool a subir
na alma. Rimos muito e dormimos num hotel cansado de existir, velho, e que dava
para uma feira das vaidades. Com ela vi uma outra Florença. Recriei-a para nós.
Chegamos e voltamos à nossa vida. Aos nossos almoços de fugida, ao mimo que possuía
pela filha dela, à comunhão entre o meu namorado de então com o marida dela. Um
dia disse-me que tinha de ir ao Porto. Combinamos ir as duas. À vinda para
baixo, de tão tarde, resolvemos ficar no Hotel do Buçaco. Ainda ele velho, mas
lembro-me de o quarto ter uma janela do tamanho de uma porta e aquilo me
encantar. Fomos jantar. Eu bebi bastante. Ela menos. Eu ri-me mais, ela menos.
Eu falei mais, ela menos. Deitamo-nos. No dia seguinte seria sábado e tínhamos afazeres
vários. Lembro-me de achar a almofada alta. É sempre a minha coluna a
castigar-me as noites que passo fora. E adormeci. Acordei com umas mãos nas
minhas pernas. Primeiro estranhei. Pensei que poderia ser do álcool. Que não
estava a sentir bem (?). Depois percebi. Entendi. Passou-me todos os anos e
viagens e almoços e jantares e conversas pela cabeça. Passou cada bocado
daqueles quatro anos pela memória. Depois entendi aquilo que não queria
entender. Depois tive um misto de pena e receio. Saltei da cama. Expliquei-lhe
que não. Que não. Que não. Que não a sentia assim. Que não a amava assim, mesmo
amando de outra forma. Ela chorou. Eu chorei. De repente o Buçaco parecia um
buraco negro que me sugou a energia. Que me esmagou. A amizade não aguentou. Nada
mais era natural. Morreu ali e morri de saudades todos os meses seguintes. Hoje
olho para trás e ainda mexe comigo esta história. Contava-a a esse casal amigo.
A Marta olhou-me nos olhos e sentiu cada
palavra que disse e antevejo que também sentiu o meu desanimo e tristeza e disse ‘que mau!’, e ‘Que horror amiga’ e o
Rui, homem, gajo, completamente cheio de testosterona abriu a boca e saiu-lhe ‘Mas então tu não fizeste nada? Oh,
mas devias ter consumado apenas essa noite, era só uma noite e depois nunca
mais a vias, mas nessa noite experimentavas para veres como era’. Percebem as diferenças?
Ando às voltas com uma história exactamente assim, nos mesmos moldes. É engraçado como imaginamos o que nos é tão real!
ResponderEliminarObrigada mais uma vez pelas palavras. Fazem-me muito bem, de verdade*
fico contente que esta sintonia continue. E são estas histórias que andam à volta que nos vamos moldando e conhecendo e envelhecendo e tudo. Beijinhos
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