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sexta-feira, 25 de julho de 2014

um amor deformado


Ele ia sempre à sua frente num passo apressado e ela, pequena, perna curta, tentava, com esforço, acompanhar. Anos e anos habituei-me a vê-los assim, em forma de comboio descontrolado e periclitante. Ele mal cumprimentava quem via e por quem passava e ela, sempre a sorrir, gostava de um dedo de conversa que nunca podia ser longo porque logo ele olhava para trás e sem uma única palavra, apenas com um frio olhar, mandava-a acabar com aquela treta. E ela nunca se queixou, nunca. O que me surpreendia era o sorriso constante dela. Não me lembro da sua face sem ser com a leveza de quem é feliz e nada tinha para o ser. Os filhos há muito foram para longe do pai castrador ausentando-se da mãe carinhosa. Ficaram os dois, numa casa cor de rosa, que parecia feliz por fora. Quantas vezes o vi ir em primazia pela rua, de mãos livres e ela logo atrás, carregada com o fardo de quem tem terras para amanhar. Que a vida do campo só é boa e leve para quem, da cidade, diz que aquilo é que é qualidade de vida. Como se os campos se amanhassem sozinhos e os vinhedos dessem o fruto saudável sem uma labuta intensa, dura, por detrás e durante um longo ano! Quando ela adoeceu ele não pareceu ficar sentido com a brutalidade da vida ‘é normal, há muitas pessoas doentes’. Ela continuou, até que pode, a acompanha-lo numa labuta diária que corrói as forças, que dilacera o corpo até que caiu por terra. Não aguentou mais. Dele sempre a mesma frieza. Dela sempre o mesmo sorriso numa face amarela que a doença imprime. E ela morreu. E ele ficou só. Só. Muito só. Continua a caminhar lesto, sem sorrir, sem paragens para conversas triviais, mas confessou ao meu pai há dias: ‘se eu soubesse, se eu tivesse a certeza que a encontrava, acredite que me matava’. Espero que ela, onde quer que esteja, o tenha ouvido. E dou por mim a pensar nas formas deformadas que o amor possui.

12 comentários:

  1. A boa qualidade de um texto sempre que olhas o mudo à tua volta e te não perdes a relatar experiências gastronómicas ou em adolescentes selfies a aguardar muitos likes.. tenho de dizer isto para que a tua escrita possa revelar a pujança que encerra e não divague por labirintos lúdicos mais próprios da literatura de auto ajuda e de quem perde mais tempo a passear em processo aditivos pelas redes sociais do que a ler livros...
    JMC.

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  2. Um elogio e um recado..
    JMC.

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    1. Não tão amargo, mas subscrevo. Ainda assim, toda a gente tem todavia as suas fases. A Frida lá deverá ter as suas.
      Abraço meu caro JMC. Beijos, Frida.

      ACASO

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  3. Carla, não sei se comente o belo texto, se comente o comentador. Vou ficar por aqui. Não sem deixar de dizer que os amigos, por vezes, são assim... sem que essa amizade seja deformada, como alguns amores. Bjs.

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    1. Eu sei que a amizade, quando verdadeira, é mesmo assim: diz-se o que se acha que é melhor para o outro, mesmo que doa:) beijinhos

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  4. Este texto bateu-me. Conheço-os de perto noutras pessoas.

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  5. Da minha parte remeto-te para o título do teu último post.

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  6. A tua capacidade de me fazeres viajar com as tuas palavras surpreende-me sempre. Não que não esteja à espera, mas porque parece que nunca estou. Também eu conheço de perto estas pessoas noutras pessoas. E também eu espero que ela o ouça.*

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