A novidade caiu na família como
uma bomba: a H e o F separaram-se. Foi a minha mãe que trouxe a notícia, se
fosse outra pessoa teríamos desconfiado da veracidade. Casados há mais de
cinquenta anos, amigos da família, filhos casados e com netos, pareciam que
gozavam, finalmente, o fruto de uma vida de trabalho em frança, numa emigração
que carcomeu os ossos, a pele e a cabeça. Finalmente em casa, numa das casas
mais belas da aldeia, pareciam viver o sossego dos últimos anos. Minha mãe
continuou ‘sim, imaginem que ele lhe batia e ela temeu. Temeu que ele a matasse
e ela fez as malas e foi viver para casa da irmã. Ele até mete dó. Parece um
pobre coitado, desorientado, sem ela’. E eu repetia ‘ele batia-lhe?’, minha mãe
não me ouviu e continuou ‘imaginem que ele estava a estender um lençol e ia
deixá-lo a secar embarrando no chão. E eu disse-lhe “ó homem de Deus, levante o
lençol, não vê que assim fica sujo?” E ele encolheu os ombros e disse-me que
tentou fazer as pazes com ela, até aos filhos já pediu ajuda’. Eu repetia, mas
para me convencer do que para a minha mãe responder ‘ele batia-lhe?’. Minha mãe
continuou ‘também falei com ela. Imaginem que a ultima sova até meteu a
polícia. E a polícia encostou-o à parede. Agora não brincam mais, há tanta
mulher a ser morta que agora apertam os calos a quem pisa o risco. E ela
aproveitou o apoio e saiu de casa’. Ele às vezes ia com o meu pai até à
beira-mar. Falava-lhe das marés, o que impressionava sempre o meu pai que
dessas coisas não percebe nada. Fruto de não haver mar em Trás-os-Montes, acho
eu. Este ano ainda não foi. Meteu-se em casa. Talvez que esteja a tentar viver
só, depois de meio século na companhia da sua mulher, e estas coisas devem
custar. Um espaço demasiado grande. Uma cama gigante. Uma mesa sem fim. Flores sem
serem tratadas e, no limite, ninguém ali para levar um par de estalos sem
reclamar. Deve ser estranho. Minha mãe foi saber dela. Talvez solidariedade
feminina, não sei, mas ela foi. Encontraram-se frente à pequena igreja e minha
mãe não precisou de lhe perguntar nada. A H disse que se tinha separado. Que
não aguentava mais. Que foram anos à espera da velhice que lhe traria um marido
mais calmo, talvez mais sereno. Quem sabe se mais sábio. Mas ele nunca mudou
mesmo com as artroses sobre os ossos e a cabeça desmemoriada. Ela deixou-o. E,
por fim, disse à minha mãe ‘sabe Lurdes, nem eram os estalos que me magoavam
mais. O que me magoava muito era a falta de arrependimento depois. Ele batia e
seguia com a tarefa que estava a fazer. Como se eu não fosse nada. Como se aquele
ato não tivesse contado’.
Ouço o relato da boca da minha
mãe e fico no sofá a pensar que, efetivamente, há dores psíquicas bem mais insuportáveis
que as físicas.
E que dor que senti agora a ler esta tua história real, minha querida. Porque este desrespeito deve ser das coisas mais difíceis de compreender ou aceitar. Fico apenas descansada pela senhora H, que está mais segura agora, mas também um bocadinho triste, porque o senhor F nunca saberá que isso não é amor.*
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