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domingo, 10 de agosto de 2014

2º dia de férias - a história que nos inundou hoje


A novidade caiu na família como uma bomba: a H e o F separaram-se. Foi a minha mãe que trouxe a notícia, se fosse outra pessoa teríamos desconfiado da veracidade. Casados há mais de cinquenta anos, amigos da família, filhos casados e com netos, pareciam que gozavam, finalmente, o fruto de uma vida de trabalho em frança, numa emigração que carcomeu os ossos, a pele e a cabeça. Finalmente em casa, numa das casas mais belas da aldeia, pareciam viver o sossego dos últimos anos. Minha mãe continuou ‘sim, imaginem que ele lhe batia e ela temeu. Temeu que ele a matasse e ela fez as malas e foi viver para casa da irmã. Ele até mete dó. Parece um pobre coitado, desorientado, sem ela’. E eu repetia ‘ele batia-lhe?’, minha mãe não me ouviu e continuou ‘imaginem que ele estava a estender um lençol e ia deixá-lo a secar embarrando no chão. E eu disse-lhe “ó homem de Deus, levante o lençol, não vê que assim fica sujo?” E ele encolheu os ombros e disse-me que tentou fazer as pazes com ela, até aos filhos já pediu ajuda’. Eu repetia, mas para me convencer do que para a minha mãe responder ‘ele batia-lhe?’. Minha mãe continuou ‘também falei com ela. Imaginem que a ultima sova até meteu a polícia. E a polícia encostou-o à parede. Agora não brincam mais, há tanta mulher a ser morta que agora apertam os calos a quem pisa o risco. E ela aproveitou o apoio e saiu de casa’. Ele às vezes ia com o meu pai até à beira-mar. Falava-lhe das marés, o que impressionava sempre o meu pai que dessas coisas não percebe nada. Fruto de não haver mar em Trás-os-Montes, acho eu. Este ano ainda não foi. Meteu-se em casa. Talvez que esteja a tentar viver só, depois de meio século na companhia da sua mulher, e estas coisas devem custar. Um espaço demasiado grande. Uma cama gigante. Uma mesa sem fim. Flores sem serem tratadas e, no limite, ninguém ali para levar um par de estalos sem reclamar. Deve ser estranho. Minha mãe foi saber dela. Talvez solidariedade feminina, não sei, mas ela foi. Encontraram-se frente à pequena igreja e minha mãe não precisou de lhe perguntar nada. A H disse que se tinha separado. Que não aguentava mais. Que foram anos à espera da velhice que lhe traria um marido mais calmo, talvez mais sereno. Quem sabe se mais sábio. Mas ele nunca mudou mesmo com as artroses sobre os ossos e a cabeça desmemoriada. Ela deixou-o. E, por fim, disse à minha mãe ‘sabe Lurdes, nem eram os estalos que me magoavam mais. O que me magoava muito era a falta de arrependimento depois. Ele batia e seguia com a tarefa que estava a fazer. Como se eu não fosse nada. Como se aquele ato não tivesse contado’.

Ouço o relato da boca da minha mãe e fico no sofá a pensar que, efetivamente, há dores psíquicas bem mais insuportáveis que as físicas.

1 comentário:

  1. E que dor que senti agora a ler esta tua história real, minha querida. Porque este desrespeito deve ser das coisas mais difíceis de compreender ou aceitar. Fico apenas descansada pela senhora H, que está mais segura agora, mas também um bocadinho triste, porque o senhor F nunca saberá que isso não é amor.*

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