Páginas

terça-feira, 31 de janeiro de 2017

dos meus medos


Deixei, na outra casa, a primeira vez que ela sorriu. O seu primeiro gatinhar. As horas que passávamos de mãos dadas na sala, eu no sofá, ela na sua alcofa, a música muito baixa e o sol a entrar ao de leve. Por lá ficou o seu primeiro quarto, primeiro sem nada, depois com tudo. O seu primeiro sorriso, o seu riso, o seu gargalhar. Ficaram lá, e eu sei exatamente onde, a primeira papa, a primeira sopa. Por lá ficaram os seus desenhos nas paredes. Deixei para trás a sua casa de banho cheia de bonecada. O seu primeiro dente. As noites mal dormidas e as noites dormidas por inteiro. Por lá ficaram os seus primeiros 6 anos, que passamos a dois e a três, a três e a dois. As vezes em que ela rodopiava ao som da música. Os seus pequenos-almoços com a sua amiga Francisca na varanda. Ficou na outra casa a sua cama de crescida, a sua escrivaninha, os seus livros e os seus bonecos. Ficou por lá as nossas histórias contadas em surdina, os risos de horas sem fim, a alegria de a ver chegar cheia de novidades. Ficou por lá o seu primeiro balbuciar, as suas primeiras palavras, as frases pela metade e as frases por inteiro. Os seus aniversários, as horas que passei na cozinha para receber os seus amigos.

Cada um de nós podia ter ficado. E cada um de nós podia ir embora. fui eu. E indo, encontro-me sangue, completamente em sangue. Em carne viva.

Perguntam-me: és ligada aos objetos, às coisas? Sou. Sou ligada às coisas que contam a nossa história.

E como custa ir em Frente despida de objetos, da casa que os encerra, da casa que nos conta e receosa que um dia a memória se apague e que nada em mim reste destes maravilhosos 6 anos.  

6 comentários:

  1. Carla, virão outros seis anos .... que serão igualmente marcantes. E mais outros seis,... Força! Beijinhos

    ResponderEliminar
  2. Senti isso quando mudei de casa há uns poucos anos. Felizmente temos tudo (tudo mesmo) em nós. ❤️

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. não sei... verei se assim é. ainda não sei. mil beijinhos

      Eliminar
  3. Como eu a entendo! Mudei para melhor há 7 meses, mas ainda dói e ás vezes dói mesmo muito. Sinto a falta do meu cantinho, foi naquele cantinho que nasceu o meu filho e onde vivemos 10 anos. A sensação que tenho é que as minhas recordações são órfãs de um lar, porque foi lá naquele sitio e foi lá que fez sentido. Mais anos virão e com eles outras memórias outras recordações, mas aquelas órfãs de lar têm que ficar em prisão perpétua no nosso coração. Um beijinho grande ( e desculpe o desabafo ).

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. é isso mesmo: memorias órfãs de um lar... desabafe sempre. beijinhos grandes

      Eliminar