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terça-feira, 20 de janeiro de 2015

dos silêncios

Raramente vou para Lisboa à hora de ponta. Aconteceu ir hoje. Logo no início do meu percurso reparo num carro que vem atrás de mim com um casal na casa dos cinquenta anos. O que me prendeu a atenção foi a cara. Iam calados, não sei se a ouvir alguma música ou não, apenas calados, ela de braços cruzados no lugar do pendura e ele a conduzir. Durante os cerca de 50 minutos que os tive atrás de mim, nunca falaram (a não ser que fossem ventríloquos), nunca sorriram, nunca alteraram a face. Ela manteve-se com os braços cruzados e ele com as duas mãos no volante como fazemos quando aprendemos a conduzir há meia dúzia de dias. Era como se fossem estátuas. Não acho mal que se cale. Que o silêncio impere. Que hajam horas mudas e sós, mas talvez por ser incapaz de me manter calada 50 minutos num carro com alguém, fitei-os e estranhei-os. Da mesma forma que fito e estranho os casais que durante um jantar só abrem a boca para a comida entrar. Já não se fala porque se falou tudo, ou não se fala porque não se quer falar com aquela pessoa? Conheço mais pessoas assim. Mais casais que há anos se calaram. Que coabitam num silêncio que, certamente, não estranham. Diz-se por aí que é bom quando o silêncio não pesa. Eu acho que é melhor quando a conversa não falta. Mas isso sou eu, que até sozinha falo. 

6 comentários:

  1. Carla boa tarde
    Reparei que este seu post estava sem comentários, como eu, muitas mulheres o leram mas não comentaram porque é preciso coragem para escrever, reflectir e debater este assunto. Estas situações, a de ir calada no carro (de certeza que era marido se fosse amigo não lhes faltaria conversa) e comerem calados (quantas vezes já tenho deparado com essa situação e volto a dizer se fosse com um amigo ou ele com uma amiga, até se esqueciam de comer tal era o prazer de conversar). Penso que não terá a ver com a idade, tem isso sim a ver com a relação ... por alguma razão se diz que o mais importante numa relação é o sentido de humor e o diálogo ... mas quantas mulheres que pelo destino são sós com seus maridos passam as refeições (em casa ou fora) sem abrirem a boca e se o fazem dá logo origem a discussão . Por isso minha linda se seu companheiro fala e é divertido aproveite bem e faça o mesmo.
    Não tenho mais comentários (penso que sabe pk?)
    Beijos
    Júlia (aqui ao lado)

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  2. Cara Julia, a questão é mesmo essa. Qual a solidão pior: aquela que sofremos quando acompanhadas ou aquela que sofremos quando estamos sos? Eu acho a primeira muito mais dolorosa e incapacitante... Imagino que a Julia também.

    beijinhos grandes

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  3. Eu não falo muito, às vezes. Ele fala mais, parece que tem sempre qualquer coisa para me dizer, até mesmo os pensamentos mais idiotas :) Eu prefiro falar quando tenho mesmo qualquer coisa importante a dizer. Acho que é nessa diferença que nos completamos. Depois tenho outros dias em que lhe digo tudo o que penso, o que sinto, o que fiz ou quero fazer... não sei... são dias! Sou assim. Ele sabe. Posso não falar muito, mas não me esqueço de mostrar afecto. O amor é isso também, não só aquilo que dizemos ou não dizemos, mas também aquilo que fazemos (ou não fazemos) face ao outro. Posso estar calada na mesa quando jantamos, mas o meu olhar, o sorriso cúmplice, a ternura ao tocar a mão dele, dizem tudo. Acho que o que me perturba mais do que o silêncio em si, é um todo da ausência de acção face ao outro que está ali à nossa frente. A indiferença, a não partilha nem de um olhar, ou de uma palavra. Isso acontece sim, também o vejo à minha volta. Também me faz questionar qual a utilidade de estar tão sozinho, estando acompanhado.

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    1. A cumplicidade não se vê só nas palavras, tem razão, mas é dessa falta de cumplicidade que eu falo. É quase doloroso assistir a isso. Mesmo doloroso. beijinhos

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  4. Eu às vezes oiço "na diagonal" coisas do dia de trabalho dele. E ele faz o mesmo comigo. E sabemos disso. Sabemos que quem passou pelo acontecimento é que sabe, não precisa de olhares muito abertos e "compreensivos", e ouvimo-nos. No fim, é coisa nossa, há sempre uma piada a dizer. De preferência, sarcástica. Eu sei que sou feliz assim e que ele também é. Casal estranho? Talvez. Mas percebo muito bem quando falas da falta de cumplicidade. Porque assim como não me falta, também não me faltam nada os longos silêncios gozados em conjunto, e se der vontade, ao fim de um bocado, um "bolas, que és velho/a, já não tens nada a dizer". Um riso e uma bela beijoca.

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    1. Cumplicidade. É isso que vices têm, cumplicidade. E há lá algo mais belo?

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