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sábado, 21 de fevereiro de 2015

Eu merecia um valente par de estalos, dados sem dó nem piedade


Quando ela me ligou, pensei que me ia pedir lixivia ou sonasol. Na verdade, com uma voz tímida a minha empregada com quem apenas falei meia dúzia de vezes e todas elas invocando produtos de limpeza ou duvidas acerca da minha casa, disse: ‘D. Carla, desculpe estar a ligar-lhe mas por acaso tem o livro da Harper Lee, eu só sei o nome em inglês e é To Kill a Mockinbird?’ Olhei para o telemóvel a confirmar se era mesmo a C. Perguntei: ‘Desculpe, quer o quê?’ E ela, num tom ainda mais sumido e talvez arrependida disse: ‘Creio que o livro que eu gostava de ler se chame Como matar uma cotovia, não sei bem, só sei em inglês e como tem tantos livros pensei que talvez tivesse este e me pudesse emprestar’. Fui atingida em cheio, como um soco no estômago, pelo meu mesquinho preconceito. A senhora que vai uma manhã a minha casa, pequenina e viúva, com um semblante triste e sorumbático e que aniquilou os fungos da minha casa- de-banho, pediu-me que lhe emprestasse o To kill a Mockinbird (vamos abrir um parenteses para dizer que eu nem sabia como se dizia cotovia em inglês. Ela sim). Não tenho pensado noutra coisa. Eu devia ser a pessoa menos preconceituosa do universo por, pelo facto de ter vindo de uma aldeia e também por não ter médicos nem advogados na família, ter sido alvo de algum preconceito urbano-depressivo. E fui preconceituosa. Muito.

Vou à FNAC comprar o livro da Harper Lee para deixar em cima da mesa, a mesma mesa onde deixo as notas com os meus pedidos para a limpeza da casa.

11 comentários:

  1. Como a vida e as pessoas nos conseguem surpreender...

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  2. Maravilhoso, este post... Por tudo o que significa!
    Um beijinho!

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  3. Compreendo-te muito bem, por mais arejada que seja a nossa cabeça, todos temos algumas ideias pré-concebidas... Toca a todos.
    Adoro que vás comprar o livro :)

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  4. Temos que aprender a não subestimar as pessoas e principalmente, creio eu, a interessar-nos por aqueles que fazem parte da nossa vida (ainda que apenas nos façam a limpeza da casa). :) Acho que fazes muito bem em tirar disso uma lição e em oferecer-lhe o livro.

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    1. Acredita que retirei. Na verdade o interessante da vida é isto mesmo: a constante lição. Beijinhos

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  5. o par de estalos já está dado... LOL a vida encarrega-se de uns quantos de vez em quando! E depois quando me perguntam o que mais me fascina admiram-se que responda que são as pessoas, sempre as PESSOAS!

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  6. Realmente, a vida, volta e meia, dá-nos assim umas lições! Beijinhos

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