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segunda-feira, 27 de março de 2017

Aquárius é mais do que um filme


 
O filme começa com uma festa em que uma senhora, tia da protagonista, faz 70 anos. A família está reunida na sala e os miúdos mais novos prepararam um discurso em honra da tia e começam a debita-lo. A tia, uma mulher de cabelos prateados, bonita, serena, olha para todos comovida com o que vai ouvindo. De repente pousa os olhos numa cómoda e nesse preciso momento recorda-se do minete que o seu companheiro, o amor da sua vida lhe fez, exatamente com ela em cima dessa cómoda. Esse móvel, que podia ser um outro objeto qualquer, é como que um objeto que rompe com o tempo, que carrega memória. Nessa cena, vê-se uma mulher ainda nova, um homem, e toda a arte do amor atinge a tela. De barulho de fundo está a voz dos miúdos a tecerem os elogios à tia que vai sorrindo à medida que o seu cérebro lhe devolve o sexo, o prazer. É assim que começa o filme Aquarius, um filme brasileiro que conta com Sónia Braga no principal papel.

A sala de cinema estava cheia e eu era a mais nova. O filme deve fazer parte de alguma brochura com sugestões de lazer para seniores. Ao meu lado uma senhora com cerca de 70 anos que, na cena de abertura, encostou-se de tal forma que a minha cadeira abanou. Percebo… é sempre bom sabermos que a geração dos nossos pais e avós também fizeram exatamente aquilo que nós achamos que só nos fazemos. Que só nós é que somos loucos e libertos e sem tabus… tretas.

O filme mostra uma Sónia Braga de 65 anos, com todas as rugas a que tem direito e ainda uma certa beleza, viúva, com três filhos, a viver o que lhe resta da vida entre um bom vinho, um charro e a sua família e amigos numa casa que sempre foi a sua casa. Aqui reside o problema, já todos os vizinhos venderam os respetivos apartamentos para que fosse construído, no lugar, um belíssimo terreno frente à praia, um empreendimento de luxo. Mas Sónia Braga (Clara no filme), não lhe interessa o dinheiro, aquelas paredes testemunharam o crescimento dos filhos, a relação com o seu marido, a sua luta contra o cancro da mama,  e como tal resiste. O que é que este filme tem de tão especial? Tudo. Para além de nos mostrar que a vida não acaba quando atingimos determinada idade (é sempre bom sabermos disso), que há sentimentos e vontades que acompanham a nossa time-line. Mas se me perguntarem que cena levei para casa, não foi o sexo desenfreado, não, nem o facto de me rever numa mulher que ouve musica enquanto bebe um bom vinho (coisa que faço amiúde), mas a cena em que ela engata um viúvo algures numa festa. Vão para o carro e começam a beijar-se. Ele coloca a mão sobre o peito dela e ela, docemente e sem tabus, diz que teve cancro e que tinha tirado esse peito e tenta colocar a mão no outro. Ele, nesse momento, de forma educada mas tensa, retrai-se. Percebe-se que esmorece e, cobardemente, diz: ‘você é uma mulher muito interessante, mas preciso levá-la a casa’. Ele não aguenta lidar com uma mulher mastectomizada. Não tem mais tusa. Ela não lhe interessa mais. Ela sorri com um certo sarcasmo e apanha um táxi para casa, sozinha. Chega a casa e vê-se a cómoda, sempre a cómoda e todos os seus lp’s (ela foi jornalista musical) e a música de Maria Betânia a entoar no filme e em nós. Abre uma garrafa de vinho e deita num copo, põe uma música e dança, dança para ela, para a vida, para nós.

Há filmes que só se permite não se ver se não soubermos que existem. Deste já vos dei conta.



4 comentários:

  1. Parabéns pelo belíssimo texto sobre um extraordinário filme.
    JMC.

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  2. Agora que já sei da existência do filme, seria imperdoavel, certo?
    Adorei o texto. Obrigada.

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