O filme começa com uma festa em
que uma senhora, tia da protagonista, faz 70 anos. A família está reunida na
sala e os miúdos mais novos prepararam um discurso em honra da tia e começam a
debita-lo. A tia, uma mulher de cabelos prateados, bonita, serena, olha para
todos comovida com o que vai ouvindo. De repente pousa os olhos numa cómoda e
nesse preciso momento recorda-se do minete que o seu companheiro, o amor da sua
vida lhe fez, exatamente com ela em cima dessa cómoda. Esse móvel, que podia
ser um outro objeto qualquer, é como que um objeto que rompe com o tempo, que
carrega memória. Nessa cena, vê-se uma mulher ainda nova, um homem, e toda a
arte do amor atinge a tela. De barulho de fundo está a voz dos miúdos a tecerem
os elogios à tia que vai sorrindo à medida que o seu cérebro lhe devolve o
sexo, o prazer. É assim que começa o filme Aquarius, um filme brasileiro que
conta com Sónia Braga no principal papel.
A sala de cinema estava cheia e
eu era a mais nova. O filme deve fazer parte de alguma brochura com sugestões
de lazer para seniores. Ao meu lado uma senhora com cerca de 70 anos que, na
cena de abertura, encostou-se de tal forma que a minha cadeira abanou. Percebo…
é sempre bom sabermos que a geração dos nossos pais e avós também fizeram
exatamente aquilo que nós achamos que só nos fazemos. Que só nós é que somos
loucos e libertos e sem tabus… tretas.
O filme mostra uma Sónia Braga
de 65 anos, com todas as rugas a que tem direito e ainda uma certa beleza, viúva,
com três filhos, a viver o que lhe resta da vida entre um bom vinho, um charro
e a sua família e amigos numa casa que sempre foi a sua casa. Aqui reside o
problema, já todos os vizinhos venderam os respetivos apartamentos para que
fosse construído, no lugar, um belíssimo terreno frente à praia, um
empreendimento de luxo. Mas Sónia Braga (Clara no filme), não lhe interessa o
dinheiro, aquelas paredes testemunharam o crescimento dos filhos, a relação com
o seu marido, a sua luta contra o cancro da mama, e como tal resiste. O que é que este filme tem
de tão especial? Tudo. Para além de nos mostrar que a vida não acaba quando
atingimos determinada idade (é sempre bom sabermos disso), que há sentimentos e
vontades que acompanham a nossa time-line.
Mas se me perguntarem que cena levei para casa, não foi o sexo desenfreado,
não, nem o facto de me rever numa mulher que ouve musica enquanto bebe um bom
vinho (coisa que faço amiúde), mas a cena em que ela engata um viúvo algures
numa festa. Vão para o carro e começam a beijar-se. Ele coloca a mão sobre o
peito dela e ela, docemente e sem tabus, diz que teve cancro e que tinha tirado
esse peito e tenta colocar a mão no outro. Ele, nesse momento, de forma educada
mas tensa, retrai-se. Percebe-se que esmorece e, cobardemente, diz: ‘você é uma
mulher muito interessante, mas preciso levá-la a casa’. Ele não aguenta lidar
com uma mulher mastectomizada. Não tem mais tusa. Ela não lhe interessa mais. Ela
sorri com um certo sarcasmo e apanha um táxi para casa, sozinha. Chega a casa e
vê-se a cómoda, sempre a cómoda e todos os seus lp’s (ela foi jornalista
musical) e a música de Maria Betânia a entoar no filme e em nós. Abre uma
garrafa de vinho e deita num copo, põe uma música e dança, dança para ela, para
a vida, para nós.
Há filmes que só se permite não
se ver se não soubermos que existem. Deste já vos dei conta.
Parabéns pelo belíssimo texto sobre um extraordinário filme.
ResponderEliminarJMC.
obrigada. beijinhos
EliminarAgora que já sei da existência do filme, seria imperdoavel, certo?
ResponderEliminarAdorei o texto. Obrigada.
certo!:) beijinhos
Eliminar