Não sei que idade teria, talvez uns 16 ou 17,
quando li, não sei de quem, fiquei com a ideia que seria de Vergílio Ferreira
ou de um escritor de alto gabarito, que os jovens que nasciam e viviam no interior,
nas aldeias, eram bem mais incultos e impreparados que os citadinos. Na altura
aquilo magoou-me. Foi como um murro no estômago. Andava eu amargurada com a adolescência
e vivia atolada na música da Bethânia e nos livros de Stefan Zweig que tinha
descoberto há relativamente pouco tempo. Na verdade, era assim, uma alminha sem
chão em busca de céu para voar. Lia tudo o que me aparecia para ler e quando me
apaixonava por um escritor, consumia-o até ao tutano. A música que buscava era
assim para o deprê, o que chateava o meu pai que para me contrariar colocava no
seu gira-discos de último grito o Frei hermano da Câmara a gritar com as suas
vestes beneditinas naquele misto de fado com música coral o que denunciava uma predisposição
para a esquizofrenia. Não gostava. Metia-me no quarto e consumia o não menos tortuoso
Stefan. Quando entrei na faculdade na grande capital, esperava que o meu jeito
de ser não me denunciasse as origens. Tentei ser uma menina discreta. Fui-me
logo dar com a susana, menina citadinha nascida e criada em plena Avenida de
Roma. A dada altura não quis ser outra. Gostava de mim como era. Com as minhas
leituras que, percebi, não serem da maioria. Os meus gostos musicais que não
passava nos leitores de cassetes dos meus amigos. Tinha os mesmos gostos de uns
quantos, que usando chinelo no pé ou sapato de vela, gostavam de almas
intensas. Em Lisboa fui viver mesmo em frente ao Quarteto. Talvez aí se tenha
dado a minha grande revolução interna no que ao cinema diz respeito. Comia
filmes como se fossem miniaturas de pasteis de nata. E compensei num ano toda a
restante vida na aldeia. A Susana mostrou-me como era bom comer castanhas
assadas com manteiga e foi em Lisboa que provei coentros pela primeira vez e orégãos
na salada de tomate. Questionam porque me assola tudo isto: porque ontem vi o
filme O Grande Hotel de Budapeste baseado em vários contos de Zweig e quase ia
chorando. Vieram em catadupa todos os seus livros que li num sopro. Relembrei
as vezes que fui com meus pais ao Porto e onde aproveitava para comprar o
Stefan em segunda mão nas alfarrabistas. Revi o fim da minha juventude e adolescência
no norte, naquela terra cheia de vinhedos e de montes que tanto podem esmagar
como elevar; terra de onde alguém disse que saiam os incultos. Hoje, bem
marinada nos meus 42 anos, tenho vontade de me rir de quem pensa que nas
aldeias reina a incultura. Ela está em todo o lado. Ela mina como erva daninha.
Se em tempos temi a denúncia da origem, hoje enalteço-a porque há em mim uma
força que advém de ser filha do Alto Douro, de ser rapariga do norte. Foi lá
que aprendi a ler, a comer livros diariamente, que me desencontrei na típica adolescência
e encontrei na literatura que me obrigava a fazer quilómetros para a ir buscar
à biblioteca da escola, ou carrinha da Gulbenkian.
A busca
da cultura não incita à sua inexistência, mas sim aguça a vontade.
Muito bom.
ResponderEliminarTu, menina-de-aldeia/mulher-da-cidade, és tudo isso e muito mais.
Muito giro este post!!! Nós seremos sempre "nós e as nossas circunstâncias" e também essas poderão sempre ser ditadas por nós!
ResponderEliminarUm beijinho.
é isso mesmo, Paula. As coisas, principalmente a vida, não vem formatada:)
Eliminarbeijinhos
Lindo :-)
ResponderEliminarRevi-me em tanto do que disseste. Também eu ansiava pela troca de livros na Gulbenkian...
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