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domingo, 8 de junho de 2014

Da aldeia para a cidade


 Não sei que idade teria, talvez uns 16 ou 17, quando li, não sei de quem, fiquei com a ideia que seria de Vergílio Ferreira ou de um  escritor de alto gabarito, que os jovens que nasciam e viviam no interior, nas aldeias, eram bem mais incultos e impreparados que os citadinos. Na altura aquilo magoou-me. Foi como um murro no estômago. Andava eu amargurada com a adolescência e vivia atolada na música da Bethânia e nos livros de Stefan Zweig que tinha descoberto há relativamente pouco tempo. Na verdade, era assim, uma alminha sem chão em busca de céu para voar. Lia tudo o que me aparecia para ler e quando me apaixonava por um escritor, consumia-o até ao tutano. A música que buscava era assim para o deprê, o que chateava o meu pai que para me contrariar colocava no seu gira-discos de último grito o Frei hermano da Câmara a gritar com as suas vestes beneditinas naquele misto de fado com música coral o que denunciava uma predisposição para a esquizofrenia. Não gostava. Metia-me no quarto e consumia o não menos tortuoso Stefan. Quando entrei na faculdade na grande capital, esperava que o meu jeito de ser não me denunciasse as origens. Tentei ser uma menina discreta. Fui-me logo dar com a susana, menina citadinha nascida e criada em plena Avenida de Roma. A dada altura não quis ser outra. Gostava de mim como era. Com as minhas leituras que, percebi, não serem da maioria. Os meus gostos musicais que não passava nos leitores de cassetes dos meus amigos. Tinha os mesmos gostos de uns quantos, que usando chinelo no pé ou sapato de vela, gostavam de almas intensas. Em Lisboa fui viver mesmo em frente ao Quarteto. Talvez aí se tenha dado a minha grande revolução interna no que ao cinema diz respeito. Comia filmes como se fossem miniaturas de pasteis de nata. E compensei num ano toda a restante vida na aldeia. A Susana mostrou-me como era bom comer castanhas assadas com manteiga e foi em Lisboa que provei coentros pela primeira vez e orégãos na salada de tomate. Questionam porque me assola tudo isto: porque ontem vi o filme O Grande Hotel de Budapeste baseado em vários contos de Zweig e quase ia chorando. Vieram em catadupa todos os seus livros que li num sopro. Relembrei as vezes que fui com meus pais ao Porto e onde aproveitava para comprar o Stefan em segunda mão nas alfarrabistas. Revi o fim da minha juventude e adolescência no norte, naquela terra cheia de vinhedos e de montes que tanto podem esmagar como elevar; terra de onde alguém disse que saiam os incultos. Hoje, bem marinada nos meus 42 anos, tenho vontade de me rir de quem pensa que nas aldeias reina a incultura. Ela está em todo o lado. Ela mina como erva daninha. Se em tempos temi a denúncia da origem, hoje enalteço-a porque há em mim uma força que advém de ser filha do Alto Douro, de ser rapariga do norte. Foi lá que aprendi a ler, a comer livros diariamente, que me desencontrei na típica adolescência e encontrei na literatura que me obrigava a fazer quilómetros para a ir buscar à biblioteca da escola, ou carrinha da Gulbenkian.

A busca da cultura não incita à sua inexistência, mas sim aguça a vontade.

5 comentários:

  1. Muito bom.
    Tu, menina-de-aldeia/mulher-da-cidade, és tudo isso e muito mais.

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  2. Muito giro este post!!! Nós seremos sempre "nós e as nossas circunstâncias" e também essas poderão sempre ser ditadas por nós!
    Um beijinho.

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    1. é isso mesmo, Paula. As coisas, principalmente a vida, não vem formatada:)

      beijinhos

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  3. Revi-me em tanto do que disseste. Também eu ansiava pela troca de livros na Gulbenkian...

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