Entrevistei-o já nem sei
porquê. Sei que era professor universitário, um tipo cheio de saber, tímido,
inteligente, acutilante e com uma particularidade: era cego. Nascera cego e como tal, não fazia
ideia do que estamos a falar quando nos referimos a algo físico que se depara à
nossa frente, porque para ele apenas havia ligações, como um puzzle, que se construíam na sua
cabeça para a construção do objeto. Era cego e notava-se fisicamente que era
cego. Não fosse isso, ninguém saberia. Durante a entrevista lembro-me que ele
falava da maldade em frases, em lugares de palavras que não fazia sentido.
Percebi que queria falar disso. Fiz-lhe a vontade. Levei a conversa para o que
poderia ser maldade no seu entender. A pergunta veio seguida de uma resposta,
errada, naturalmente, porque era a minha resposta, e não a dele. «Para si
maldade será, provavelmente ter nascido cego», tentei com dotes adivinhatórios que apenas me remeteram
para a valeta. Lembro-me nitidamente, dele sorrir e dizer: ‘não, nunca achei
que isso fosse uma maldade. Maldade de quem? De Deus? Não, maldade foi ter
comigo uma senhora durante 16 anos. Ela limpava e arrumava a casa. Não o
consigo fazer mas preciso de saber onde está tudo para me movimentar. Quando me
pediu um aumento absurdo e eu não podia pagar-lhe, tive de lhe dizer que não. No dia
seguinte, quando cheguei a casa, bati contra o móvel da sala, entrei na cozinha
e tropecei no sofá, fui à casa de banho e caí sobre a banheira, entrei no
quarto e tinha uma mesinha cabeceira sobre a cama. Ela tinha alterado toda a
disposição da minha casa. Eu não sabia onde estava. Caía e levantava-me para
cair de novo. De tudo o que ela me poderia ter feito, fez a maior maldade:
tornar desconhecido o meu porto’.
Hoje, enquanto tomava um chá ao fim do dia, na mesa ao lado da minha ouvi um homem, com um ar bastante arrogante, dizer a uma mulher bastante desfeita: eu não fiz o que me fazia bem, ou aquilo que me fazia feliz, eu fiz aquilo que eu sabia que te iria fazer mal.
Muito bom. E muito verdade.
ResponderEliminarAté me arrepiei.
ResponderEliminarSaber que andam pessoas assim, por ai, não para serem felizes, mas para evitar que os outros o sejam.
Há tanta gente assim por aí... quase (quase) que se fica com medo
ResponderEliminarAvassalador de tão verdade que é!
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